Foi difícil escolher o primeiro post do blog do Race Cast. Tanto conteúdo já tinha sido postado no Twitter e no Instagram que ficávamos perdidas para escolher: "vamos postar todos de uma vez?", "vamos começar agora e ir postando os antigos conforme der?" foram perguntas que nos fizemos.
Mas acho que a tradução dessa carta tão poderosa escrita pela Jamie para o site The Players Tribune no dia 11 de março é bastante simbólica e um ótimo primeiro post! Então aqui vai:
Por muito tempo eu não pensei sobre o significado de ser uma mulher no esporte a motor. Acho que pensei que não era importante.
Antes de tudo eu sou uma piloto.
É tipo aquele clichê, “Assim que colocamos o capacete, não faz diferença contra quem você está correndo”.
Mas, todos nós sabemos que a realidade não funciona bem desse jeito.
Algumas coisas são sim diferentes para homens e mulheres nesse esporte. Mas eu não acredito que nenhuma dessas diferenças signifique que mulheres não podem ser pilotos de sucesso em um nível de elite.
Eu sou uma mulher dentro do esporte a motor e me orgulho disso. E acredito que me identificar como uma piloto feminina é importante. Eu não quero me desfocar até ser “uma dos meninos”. E deixe-me explicar o porquê.
Na minha infância eu estava acostumada a frequentar ambientes dominados por homens. Na escola, eu era uma das apenas quatro garotas da minha série - então, naturalmente, nós costumávamos fazer o que os meninos estavam fazendo.
Nesta época, eu não era particularmente consciente disso, mas olhando para trás é muito estranho de pensar que eu era a única menina jogando futebol no meio de uma campo com 100 meninos.
Eu era a clássica “tomboy” (palavra do inglês usada para descrever meninas que curtem fazer ‘atividades de meninos’). Eu costumava copiar meu irmão mais velho, Ollie. Se ele estava chutando uma bola no quintal, eu estava chutando uma bola no quintal. Se ele queria brincar com carros, então eu queria brincar com carros. Então, obviamente, quando Ollie começou a correr em campeonatos de Kart no autódromo local em Castle Combe aos domingos, eu também iria correr.
Eu lembro de ficar tão nervosa que eu não conseguia comer nada na manhã antes da minha primeira corrida. Imagine isso, eu tinha 11 ou 12 anos e vestia os macacões usados de Ollie. Eu estava completamente ridícula.
As únicas vezes que eu tinha dirigido antes tinham sido no Peugeot 107 velho do meu pai no caminho do lado de fora da nossa casa, quando ainda vivíamos na Isle of Man. Eu era bem pequena, tipo 5 anos de idade, e sentava em seu colo mexendo o volante - basicamente tentando não bater em nada.
Alguns anos mais tarde, quando eu era alta o suficiente para alcançar os pedais, eu apertava o freio e acelerador, enquanto meu pai mexia na embreagem sentado no banco do passageiro com uma bengala.
Eu ia super devagar… tipo primeira marcha, segunda marcha, chegava à terceira e aí voltava rapidamente para a segunda.
Mas, assim que eu entrei na pista em Castle Combe, correr só parecia… natural.
Eu fui picada pelo bichinho da velocidade.
Eram karts que iam no máximo a 30-40 mph, nada muito tecnológico, mas o suficiente para sentir aquela emoção quanto mais eu acelerava. E eu lembro de pensar “Uau, quero continuar fazendo isso”.
Sentir essa adrenalina realmente se torna um vício.
Lá atrás, quando estava correndo em um nível júnior, eu realmente não me sentia diferente dos outros. Como eu já disse, eu estava acostumada a ambientes dominados por homens em toda a minha vida. Não importava para mim que eu quase não via nenhuma outra garota no grid.
Eu amava o esporte e achava a maioria das pessoas extremamente abertas e acolhedoras. Claro, quando eu ganhava corridas, eventualmente escutava alguns comentários negativos, e outras vezes eu via a surpresa na cara das pessoas quando eu tirava meu capacete e eles viam quem eu era.
Ainda é muito incomum ver garotas correndo e por isso acho que as pessoas não sabem como processar isso. Elas podem ter todas as boas intenções do mundo, mas muito surpresas com a sua presença lá… e um tanto condescendentes.
Eu pensava comigo mesma “Se tivesse sido meu irmão que tivesse ganhado, vocês estariam fazendo todo esse alarde?”
Porém, quando eu cheguei ao nível sênior, eu me tornei mais consciente de como as coisas podem ser diferentes para pilotos mulheres.
Homens e mulheres são diferentes. Isso é apenas um fato. Eu não acredito que as diferenças realmente afetam o resultado final quando falamos de corrida. Quer dizer, não existe motivo para uma mulher não ter tanto sucesso quando um homem no esporte a motor. Mas essas diferenças existem, e eu não tenho certeza se existe total respeito por elas ainda.
Esporte a motor é uma categoria extremamente física, mais do que muitas pessoas se dão conta, e se preparar fisicamente da maneira correta como uma mulher sem o apoio e infraestrutura correta é bastante difícil.
Por exemplo, se você olhar para qualquer carro de F1 para baixo, todos são feitos para o corpo de um homem - desde as dimensões do cockpit, o assento, até o tamanho dos pedais.
Eu meço 1 metro e 60 e tenho pés pequenos, então desde o começo eu estou tentando me adaptar e compensar a diferença;
Como uma mulher, na maior parte do tempo, você acaba aprendendo a lidar com as coisas ao invés de se manifestar.
É óbvio que eu entendo porque as coisas são assim. Se você é um fabricante que faz carros ou kits e está vendendo produtos a um mercado que é 99% masculino, naturalmente você não irá focar em criar coisas para mulheres.
Mas é difícil de se inspirar como uma mulher quando você não se vê representada ou contemplada.
Algumas coisas estão mudando em relação a isso.
Eu me lembro do primeiro ano da W Series, em 2019 - o primeiro campeonato feminino de monopostos - nossos macacões vieram da Puma, e todas nós tivemos o mesmo problema.
As mangas eram largas e o macacão ficava super apertado nos quadris. E aí, as pernas eram super largas de novo.
Todos os 20 macacões foram devolvidos e arrumados. A partir daí, Puma se tornou o primeiro fabricante a criar macacões específicos para mulheres.
Essas pequenas coisas vão se somando e fazendo diferença com relação ao quão confortável e bem vindas as mulheres se sentem no esporte.
E por isso, a W Series foi tão importante.
Eu sei que esse é um tópico controverso para algumas pessoas.
Eu vou ser honesta, quando eu ouvi a ideia pela primeira vez de um campeonato feminino no apoio financeiro para F1… eu não gostei nada.
Eu já tinha tido sucesso em competições mistas naquele período. Eu já tinha ganhado corridas na F3 e em outros campeonatos contra homens, porque eu precisava ser separada agora?
O termo segregação até foi levantado por algumas pessoas.
Mas eu fui convencida por algumas pessoas de que este era o movimento correto. E, assim que eu conversei com os envolvidos, ficou clara que a oportunidade era, na verdade, fenomenal.
Essa era uma competição totalmente financiada.
Se você ainda não sabe, deixe-me te contar, é muito caro financiar uma carreira no esporte a motor. É extremamente caro. Você precisa de alguém para te financiar… realmente te financiar.
Quando eu estava começando, eu tive muita sorte que meus pais conseguiam financiar tanto a minha carreira quanto a do meu irmão até fazermos 16 anos, mas então eles disseram “OK, vocês estão por conta própria agora”.
Depois disso, correr se torna um negócio, e a quantidade de dinheiro é arrebatadora. Houveram várias vezes nas quais eu estava procurando patrocinadores nos 45 do segundo tempo só para conseguir competir no ano seguinte.
Parece bruto, mas é assim para todos os pilotos. Se você não tem patrocínio em todos os níveis de entrada, você nunca vai conseguir chegar lá. Não importa quem você é.
Essa é uma barreira para, bom, todos no esporte, mas especialmente para mulheres. Porque quando não existem exemplos no top do esporte para admirar, daí pais, patrocinadores e apoiadores podem ter um pé atrás em financiar uma carreira que parece tão improvável.
A W Series profissionalizou as corridas femininas de monopostos. Forneceu oportunidade, exposição e veja tudo que projetou para nós. E isso é muito legal.
Vencer a W Series em 2019 e 2020 transformou minha carreira. Sem isso, provavelmente eu não estaria correndo hoje. É simples assim.
Lá atrás quando eu comecei a correr de kart, me perguntavam muito qual era meu objetivo e eu sempre falava “F1”.
Eu falava isso porque era o auge, o topo, mas nunca realmente acreditei.
Por muito tempo, eu só não enxergava um caminho viável.
Mas agora, depois das oportunidades que eu tive na F3, a W Series e sendo uma piloto de desenvolvimento na Williams, parece… alcançável.
Para ser clara, eu não estou iludida e sei bem o quão difícil é, mas eu acredito em mim mesma.
Para o esporte, eu acredito que seja extremamente importante vermos uma mulher chegar lá agora.
Na minha opinião - e eu não acredito que seja uma opinião controversa - esporte a motor não deveria ser esse funil onde apenas homens ricos conseguem chegar. Existem aqueles fora da curva, é claro, mas nós precisamos de uma diversidade maior.
Ao longo dos anos várias mulheres estiveram muito perto de entrar na F1, mas ainda assim fazem 46 anos desde que a última mulher, Lella Lombardi, esteve em um grid de um GP.
Pessoas como Susie Wolff e Claire Williams são uma inspiração, mas é necessário que existam mais modelos femininas de cima a baixo.
Quanto mais perto eu chego da F1, mais eu sinto um certo nível de pressão e vigilância.
Mas quando eu estou pilotando, minha motivação principal é de uma competidora que quer sucesso. Eu faço isso mais para mim mesma do que por qualquer outro motivo. E se eu ganho ou perco, eu não quero que isso reflita em todo um gênero. Porque eu não conseguindo não tem nada a ver com a performance de outras pilotos.
Eu sei que se eu não estou na pole é porque eu freei muito cedo, e isso não acontece porque eu sou uma menina - acontece porque eu sou eu.
Eu estou confiante que o mais cedo possível uma piloto vai chegar e se estabelecer no nível mais alto de excelência. Eu não tenho nenhuma dúvida sobre isso.
Eu me lembro de quando entrei na W Series, eu fiquei pensando “eu não tenho idéia de quem eles vão achar para competir…”. Pilotos mulheres são muito raras! Mas quando eu apareci para o primeiro processo de seleção, tinham quase 100 mulheres lá do mundo todo. Eu fiquei maravilhada. E o padrão está aumentando a cada geração. Elas só precisam receber o apoio correto.
Inclusive, você consegue imaginar qual o ganho comercial para quem quer que seja a primeira piloto superestrela??
Eu quero ser a próxima piloto mulher na F1. Eu quero que a próxima vez que eu venha escrever aqui seja sobre minha primeira temporada na F1.
Mas, se não for eu, eu espero que possa deixar as coisas melhores do que as encontrei para a próxima geração de mulheres. Eu quero ajudar a mudar os pré-conceitos e vieses que mulheres não conseguem fazer este trabalho tão bem quanto os homens. Para que, quando a próxima piloto de kart estiver pronta para romper as barreiras, ela consiga encontrar o caminho e apoio certos para chegar ao topo.
Meu conselho para ela é não deixar as estatísticas a assustarem.
Confie no seu instinto.
Mulheres com certeza são capazes
Você é capaz.
*todas as imagens são reproduzidas da matéria original em inglês e o conteúdo deste post é a tradução desta matéria: que você pode acessar aqui: https://www.theplayerstribune.com/posts/jamie-chadwick-formula-one-car-racing